21/01/2017

Yoskhaz - Amar é uma arte de muitas virtudes


*Eu acompanhava o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, num ciclo de palestras que ele ministrava, quando recebi o convite para a festa de aniversário de oitenta anos de um parente muito querido. Seria na cidade em que eu morava e estávamos noutra bem próxima. Convidei o Velho para ir comigo; ele aceitou de imediato. Confessei a minha contrariedade em encontrar alguns parentes com os quais restavam rusgas do passado. Falei que na festa encontraria com um primo, que foi um dos meus melhores amigos na adolescência, mas que em determinado momento nos desentendemos e brigamos. Eu não lhe dirigia a palavra há anos. Pedi para que ele não estranhasse. O Velho comentou: “As cerimônias, sejam pessoais, familiares, profissionais ou religiosas são importantes rituais, não apenas de celebração da vida, mas de aproximação, não somente entre iguais, aqueles que vibram na mesma sintonia energética, porém, e tão importante quanto, é a chance de encontro entre aqueles que possuem divergências que necessitam ser pacificadas. A diferença no olhar nunca deve ser motivo para o distanciamento do coração. São as flores do respeito, da compaixão, da humildade, da paciência e da coragem indispensáveis no jardim do amor. Para amar não basta o bem-querer. O amor é uma arte de muitas virtudes”.

Achei que o monge não havia me compreendido e resolvi me calar. Na festa apresentei o Velho para todos, que como de costume, logo angariou muita simpatia. Ele vestia um blazer escuro acompanhado de uma gravata borboleta colorida que parecia decorar a sua enorme barba branca. A bengala que o auxiliava nos passos, por vezes, parecia um malabar nas mãos de um artista. Era um homem sofisticado por sua simplicidade. A sua nobreza residia na atenção delicada a todos e a tudo que o cercava. Tudo corria bem até que em certo momento vi que aquele primo, o qual eu não falava, tinha se aproximado do monge e iniciado uma conversa. Para a minha irritação, eles conversaram por mais tempo do que deveriam e, pior, em determinados momentos chegaram às gargalhadas. Quando o Velho se aproximou não escondi a minha insatisfação nem os meus motivos: ele se divertia ao lado de um inimigo meu. O Velho, sem alterar a sua serenidade, me disse com a sua voz sempre suave: “Ninguém é de todo bom nem de todo ruim; ele não é meu inimigo nem deveria ser seu”. Falei que ele estava enganado quanto ao meu primo e não deveria se iludir pelo discurso encantador que possuía, pois na intimidade se revelaria uma pessoa bem diferente. O monge esclareceu: “Todos somos assim. Em convívio esparso podemos mostrar apenas o que temos de melhor e, não tenha dúvida, esta luz existe de verdade. No entanto, somente a intimidade arranca as máscaras que usamos na ilusão de nos proteger do mundo e arromba as portas do porão escuro do nosso ser. Então, mostramos as sombras que nos habitam. Isto também tem o seu lado bom, pois apenas conhecendo quem somos podemos nos tornar quem desejamos ser, em processo contínuo de transformação. A convivência intensa esgarça famílias, casamentos e amizades de longa data. Ou as tornam mais firmes, como guerreiros cujos laços restam fortalecidos após se ajudarem em árduas batalhas, em provas cruciais de amadurecimento e aprimoramento. Esses relacionamentos se tornam as mais belas obras de arte existentes, pois têm como matéria-prima a vida esculpida pela espátula do amor. Nenhuma tela, escultura, livro ou música será mais valiosa e profunda. Toda a arte, sem negar o seu valor, não passa de um decote amplificado da história da vida de cada um de nós”.

“Amar é a arte maior. Você é o artista; a sua vida é a grande obra. Anônima ou não, ela tem igual importância a todas as demais e, quando pronta, ao invés de repousar em um museu, embelezará os jardins da humanidade. O universo agradece, se expande e se ilumina. Isto lhe dá poder e o torna um ser encantado”.

Falei que tinha perdoado o meu primo, não lhe desejava mal, mas jamais esqueceria o que ele me fez. Apenas não mais desejava conviver com ele. Acrescentei que eu não era obrigado a isto. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Ninguém é obrigado a nada. No entanto, a todo o momento temos a escolha de manter o barco na tempestade ou buscar novos horizontes onde poderemos atravessar oceanos com alegria e em paz. Cada qual é o seu próprio capitão, definindo os mares que navegará e as praias que aportará. As suas conquistas e desastres. Não existe sorte tampouco cabe reclamações”. Pediu um copo d’água a um garçom, bebeu um gole e prosseguiu: “Quando não suportamos a convivência do outro significa que o perdão ainda não floresceu. O perdão está ligado a Lei da Renovação e das Infinitas Oportunidades, além da Lei do Amor. Absolutamente tudo precisa novamente virar semente para que a vida possa prosseguir. O renascimento é um poderoso instrumento da Luz”.

“Só existe Luz quando há amor; é impossível amar sem perdoar”.

“Para que haja perdão é necessário a virtude da compaixão, para entender que cada qual age no limite exato das suas capacidades. Nem mais nem menos. No entanto, todos mudam, se transformam e evoluem. Perdoar não é esquecer, isto é amnésia; perdoar é a capacidade de recordar os fatos envolvendo-os com um manto de compreensão quanto as limitações e motivações, de acordo com o nível de consciência e capacidade amorosa que todos tinham na época. Tanto ele quanto você. Então, se torna necessário o suporte de outra virtude, a humildade. Como exigir a perfeição do outro se não a temos para oferecer? Que tal ofertar o seu melhor e aceitar de bom grado o que o mundo tem a entregar, mesmo sabendo que quase nunca será aquilo que você espera? Assim fazem os espíritos livres. Isto é viver com amor e por amor”. Bebeu mais um gole de água e concluiu: “Não desejar mal ao outro não significa perdoar. Isto é apenas um importante degrau para o perdão. Combater o mal com o mal é usar a moeda suja das sombras. Recusar o jogo das sombras é o início da jornada de iluminação, do conhecimento, do equilíbrio, da plenitude do ser e da paz”. Pousou o copo sobre uma mesa e prosseguiu: “Não desejar o mal ainda está distante do verdadeiro poder do amor. É preciso exercitar o bem. Sem amor não há luz; sem luz nos mantemos na cela escura das sombras”. Interrompi para contestar. Argumentei que eu não estava aprisionado, apenas exercia o meu direito inalienável de não conviver com o meu primo. O Velho balançou a cabeça e disse: “Sim, as escolhas são suas e nelas residem todo o seu poder. Apenas elas transformam e libertam. No entanto, preste muita atenção, pois as piores prisões não têm grades e, por isto, não nos percebemos presos. Não há liberdade sem amor, não existe amor sem perdão, não existe perdão sem compaixão e humildade”.

Confessei que havia o risco de o meu primo me virar as costas ou ser rude na tentativa de aproximação. O Velho balançou a cabeça e explicou: “Aos fracos restam a raiva, a mágoa e o ressentimento. O medo é sombra; a coragem, luz. O amor está destinado apenas para aqueles que têm coragem. A coragem das batalhas, dos voos inimagináveis, de ir além da curva. É preciso coragem para enfrentar a recusa ou a incompreensão do outro. Se isto acontecer, será preciso paciência, outra valiosa virtude, para entender que o outro ainda não está pronto para o reencontro e, claro, sem esquecer de mais uma virtude, o respeito. Respeito à liberdade e à escolha alheia, pois, assim como você, ele também não está obrigado a fazer nada”.

Falei que aquelas palavras eram muito bonitas, mas a vida é dura e a realidade bem diferente. Confessei que muitas vezes tive vontade de procurar o meu primo para conversar e findar o conflito. Porém, eu tinha certeza de que ele me viraria as costas ou me humilharia de alguma maneira. Não estava disposto a me rebaixar. No mais, acrescentei, ele era quem estava errado, logo, era ele quem deveria tomar a iniciativa. O Velho abriu os braços como se precisasse de gestos para explicar as palavras e falou: “Percebe que o orgulho é carcereiro do coração? Somente é passível de humilhação quem possui o ego exacerbado. O orgulho e a vaidade são sombras que engradecem o ego e fragilizam o ser. Aprisionam e trazem dor por envenenamento. A humildade e a compaixão compõem o antídoto. Paciência, respeito e coragem são indispensáveis para que o tratamento avance. O amor é a cura”.

“Para se banhar na Luz é necessário vivenciar o amor em toda a sua amplitude. Para isso será preciso que todas as virtudes floresçam em si”.

Recusei-me. Como era o seu costume, o Velho não insistiu. Ele sempre expressava o seu pensamento de maneira clara e calma, quem tivesse ouvidos que ouvisse. O monge seguiu flanando por entre os convidados, conversando com todos e se divertindo muito. Fomos dos últimos a sair da festa. Dirigi o carro por alguns minutos até que um dos pneus furou. Somente quando peguei o estepe me dei conta que estava vazio. Estávamos em um lugar ermo, distante para voltar a pé até o local da festa em busca de ajuda e sem sinal de celular. Acenei para alguns carros que passavam, mas o medo que reina nas grandes metrópoles os impediram de parar. O monge apenas olhava e se encantava com o que acontecia, como se nada o assustasse. Quando estava a ponto de desistir, um carro encostou. Era o meu primo. Me ofereceu um sorriso sincero, cedeu o pneu sobressalente do seu carro e ainda me ajudou a trocar. Quando acabamos, olhei para ele e, um tanto sem jeito, agradeci. Ele disse que único agradecimento que aceitaria seria um forte abraço. Nos abraçamos com lágrimas nos olhos. Ao meu ouvido sussurrou um pedido de perdão. Pediu desculpas por ter me feito sofrer e dado margem ao nosso afastamento. Falei que precisávamos conversar para resolver os mal-entendidos de outrora. Ele questionou se era necessário, pois já tivéramos tempo suficiente para pensar sobre o ocorrido e tinha certeza de que cada um de nós sabia onde poderia ter feito diferente e melhor. Já tinha se passado muito tempo e as pessoas que éramos na época dos fatos simplesmente não mais existiam. Éramos outros. Falou que gostaria muito de encontrar comigo, não para remoer o passado, mas para falarmos do presente, dos filhos e dos sonhos que ainda nos movimentam. Sim, ele tinha razão. No meu íntimo eu sabia que não cabia a ele toda a conta; uma parte do débito, maior ou menor, não importava, me pertencia. Combinamos de almoçar no dia seguinte. Celebraríamos a alegria de um novo ciclo em nossa amizade.

Quando voltei ao meu carro, comentei com o monge que sentia uma onda de paz e alegria ao meu redor. Envergonhado, admiti que aquele a quem eu considerava pequeno tinha sido um gigante ao me oferecer uma bela lição.  Em outra ocasião, eu me esforçaria para que a iniciativa fosse minha.

O Velho não disse palavra, apenas apreciava a paisagem pela janela. E sorria.*

Yoskhaz


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